Korda e a imagem que projetou o mito
Korda e a imagem que projetou o mito
Em entrevista inédita, de 1988, cubano conta como fez o flagrante de Guevara, foto que virou um ícone da rebelião
Em 14 de fevereiro de 1988, o fotógrafo cubano Roberto Paneque Fonseca e o colega brasileiro Ricardo Malta visitaram Alberto Korda (1928-2001), fotógrafo da Revolução Cubana e autor da mais célebre imagem de Che Guevara, em sua casa em Miramar. Em meio a doses de rum e goles de Tropi Cola, a Coca-Cola cubana, iniciaram uma conversa de quase oito horas em que Korda falou, entre outros temas, do contexto em que fez a foto do guerrilheiro, morto há 40 anos, no dia 8 de outubro, e da maneira como ela foi amplamente utilizada ao longo da segunda metade do século 20. A entrevista será publicada em forma de livro, ainda sem data definida, pela Record, mas o Estado reproduz com exclusividade alguns trechos do material.
O FLAGRANTE
Penso que o Che foi um sujeito excepcional e que eu tive a sorte, por casualidade, não por talento fotográfico, de fixar a imagem que ele transmite, capaz de dizer a todos que a olham quem foi Che Guevara e a sua personalidade. Não me orgulho dessa foto. É uma foto jornalística numa tribuna pública. Mas eu lhe digo que entre as centenas de fotos que foram tiradas do Che esta sobrevive acima das demais... Não me contradigo ao dizer que a foto foi casual. Eu lhe falo como fotógrafo. Não que eu tenha apanhado o Che, trazido ao meu estúdio e lhe dito: fique aqui, fique ali, o cabelo assim, olhe para lá, dê ao olhar uma força assim... Não, não há nenhuma intervenção minha nisso. Estou num comício público, com milhares de pessoas, com uma velha câmera: uma Leica, uma velha Leica com lente de 90 mm, retratando os personagens que estão na tribuna de onde Fidel vai falar, por conta de uma sabotagem que a CIA nos havia feito e nos custou mais de 100 mortos: um vapor carregado de armas, francês, que explodiram aqui, na Baía de Havana, e no momento em que estou correndo a câmera pelo espaço dos personagens que estão na tribuna, fazendo um trabalho profissional de jornalista, depois de ter retratado a multidão, as caras tristes das pessoas, então vou retratar as pessoas do governo que estão ali, e no momento em que passo por um espaço vazio, surge diante de mim a figura do Che com uma imagem assim. Tiro uma foto quase assustado de ver aquela imagem na minha câmera; quase por um movimento instintivo do subconsciente, viro a câmera, coloco-a na vertical e faço uma segunda foto: dois negativos. Logo em seguida o Che se retira e sai da tribuna e fica para sempre a imagem que você conhece. Tem um jornalista cubano que me entrevistou e eu lhe respondi mais ou menos isso que disse a você. Ele disse: “Bom, o Korda é humilde. Ele disse que não tem nenhum mérito histórico por ter feito a foto; mas é preciso reconhecer que Korda, como repórter fotográfico, estava sempre alerta.” Isso eu reconheço. Havia 30 repórteres fotográficos junto de mim naquele dia e nenhum tirou a foto.
CARTIER-BRESSON
Admiro muitíssimo Cartier-Bresson, e tenho seu livro O Momento Decisivo. E essa foto foi o meu momento decisivo: 1/250 avos de segundo com 5,6 de diafragma. Tirei, e 1/25 avos de segundo depois a imagem se perdeu. Sabe por quê? Porque uma cabeça, quando a pessoa está andando, num segundo está em outro lugar: a foto não serve.
CORAÇÃO
Meu trabalho naquele momento era uma situação emocionante. Pelo simples fato de sermos cubanos: haviam matado mais de 130 cubanos numa explosão de sabotagem. O ambiente, as lágrimas... tudo era emocionante, isto é, o coração estava presente ali; mas sempre ponho o coração em meu trabalho. Quando não posso pôr o coração em meu trabalho, eu o rejeito. Muitas vezes vêm me pedir um trabalho e se não estou com o coração para ele, digo: Bom... quem sabe na semana que vem. Ou seja, não aceito que naquele momento eu estava naquele lugar profissionalmente ou ganhando 10 pesos que me pagariam para estar ali. Estava como fotógrafo, repórter, cubano, pesaroso e por inteiro. Meu coração estava atrás daquela câmera, isso não nego. Agora, que tenha saído o Che no momento em que eu passo a câmera, com aquela expressão e com aquela figura, e que eu quase instintivamente tenha apertado o obturador, não me deixa orgulhoso de ter feito uma tremenda fotografia. Não sou amigo de René Burrí. Ele fez uma foto do Che que está num cartaz colorido, com o microfone. Ele pensou que essa foto fosse a mais famosa. Há pouco eu o vi no Hotel Habana Libre e lhe disse: René, historicamente eu te ferrei. A foto fui eu que fiz, não você. E ele me disse: É verdade. (Ele ri com picardia).
COINCIDÊNCIAS
Acredito em coincidências, existe um fator de tantos por cento; mas também admito o contrário, que eu estava ali de coração, que estava muito atento ao que estava se passando, que tinha um sentimento que fixava o Che Guevara nessa expressão, porque ela era em parte compartilhada por mim como fotógrafo. Quero dizer que um conjunto de coisas permitiu que a foto fosse feita. Tanto é que alguns dos 30 fotógrafos ou mais que estavam ali tinham equipamentos melhores que o meu, e não fizeram a foto. O Che passou por ali e não chamou a atenção deles: não estavam atentos. E mais: eu volto do ato, revelo os negativos, faço os contatos, examino o contato, digo: boa foto do Che. Faço um print, levo-o ao jornal para que o publiquem à noite e no dia seguinte saísse a descrição gráfica do ato. No entanto, escolheram para primeiro plano minha foto de Fidel, com duas granadas na mão, expondo-as para o povo, uma bandeira cubana ali atrás... mas a do Che não publicaram. Não lhes chamou a atenção; mas, no dia seguinte, pego o negativo, observo-o e digo para mim: a verdade é que o Che está com uma expressão que é minha imagem do caráter do Che, da sua determinação, do seu olhar para o futuro, para um espaço que não sei. Encontro nela uma série de valores e faço esta que está aí, na entrada do meu estúdio: 30 por 40 polegadas (aproximadamente 76 cm por 35 cm), fixo-a numa moldurinha de madeira e coloco-a no meu estúdio. Essa foi a primeira foto que imprimi do Che, amarela assim como esta... Coloquei-a no meu estúdio e me pus a desfrutá-la como fotógrafo. Depois disso, passaram por meu estúdio alguns companheiros da Revolução, entre eles Haydée Santamaria, que era diretora da Casa de las Americas, pessoa muito sensível, admiradora do Che, e me disse: “Korda, que boa foto do Che. Gostaria de me dar uma?” Eu lhe disse: “Para mim é uma honra!” Haydée foi a companheira de Fidel em Moncada; seu irmão foi morto e levaram-lhe em sua cela os olhos dele: “Veja, são os olhos do seu irmão.”
FELTRINELLI
Naquela época, meu estúdio ficava na Calle 21, na frente do Hotel Capri, e digo a Feltrinelli para entrar. Ao ver a foto, ele me diz: “Essa é a foto que eu preciso.” Não sabia quem era Feltrinelli, para mim era apenas um italiano. Feltrinelli me disse: “Pode me fazer duas cópias deste tamanho para amanhã e eu mesmo passo para apanhá-las?” Fiz as duas cópias e no dia seguinte o homem passou para retirá-las. Perguntou “Quanto é?”, e eu respondo que nada. Você é amigo da companheira Haydée Santamaria. Dei as cópias a Feltrinelli e fiquei tranqüilo, porque não estava fazendo nenhuma transação comercial. Nem me interessava o que ele ia fazer com a foto.
DISCURSO DE FIDEL
Depois vem a queda do Che na Bolívia e, pela primeira vez, a foto é utilizada no edifício do Ministério do Interior, em dimensões gigantescas, servindo de fundo para a Plaza de la Revolución de Havana e, com isso, para o discurso de Fidel pela morte do Che. É nesse momento que Cuba a torna oficial, porque é utilizada no discurso fúnebre feito por Fidel. Aquilo foi impressionante: havia quase 1 milhão de pessoas na Plaza de la Revolución e não se ouvia nada. Enquanto Fidel falava, reinava o silêncio mais absoluto que eu já tinha ouvido em uma multidão. Em seguida, depois da chegada a Cuba do Diário do Che na Bolívia, Fidel deu a Feltrinelli a primazia mundial da publicação do Diário.
DIÁRIO DE CHE
Eu estava em Milão e os jornais anunciavam a edição do Diário com grande destaque e que o que fosse arrecadado seria destinado à guerrilha venezuelana. Essa era grande notícia e vinha ilustrada com um desenho baseado na minha foto. Com o Diário imprimiram um cartaz da foto com 1 metro de altura por 70 centímetros de largura... faro comercial. Nesse momento, na Europa e no mundo todo, para a juventude, tanto marxista como esquerdista, anarquista, burguesa, milionária, a figura do Che se convertera no símbolo de uma época. Esse homem fez um cartaz com essa foto - o único que a tinha era ele -, vende 1 milhão de cartazes em menos de três meses a US$ 5 dólares cada um: US$ 5 milhões de dólares! A mim, ninguém nunca perguntou nada, nem me pagou nada, nem me consultou sobre nada.
SEM POLÊMICAS
Em 1987, em Milão, Grazia Nery, uma das mulheres que dominam a fotografia de imprensa na Europa Ocidental, me disse: “Korda, assine para mim este documento dizendo que a propriedade dessa foto é nossa, que você a entregou para nós em tal dia, no ano 60 e não sei quanto, que você deixa isso nas mãos dos meus advogados, e eu garanto US$ 250 mil para você. O resto é meu...” Não sei quanto ia tirar da editora de Feltrinelli. Era uma briga para os advogados, que sempre fazem acordo, e que se não chegasse a recolher US$ 1 milhão, ao menos abocanharia US$ 500 mil para ficar em “paz”.Expliquei a ela que queria entrar em polêmicas comerciais com essa foto. Se fosse outra coisa, uma foto minha, sim; mas uma foto do Che, não. Me dou por satisfeito por Feltrinelli ter feito o favor a mim, um fotógrafo que se dedicava a fazer moda, de retratar a Revolução porque me coube a época em que vivi. Eu me sinto famoso de passar à posteridade com uma obra minha; não eu; uma obra minha, graças a Feltrinelli. Eu lhe dei a foto. Ele podia fazer o que quisesse com ela, porque eu lha dei.
KORDA A RICARDO MALTA
Vou lhe explicar uma coisa que você talvez não compreenda, porque vem de outro país, de outro mundo. Quando eu dei essa foto, o direito autoral em Cuba havia sido abolido, por causa de um livro de Medicina de um professor americano. Se publicássemos esse livro para ser utilizado pelos nossos estudantes de medicina, teríamos de pagar milhares de dólares ao americano. E Fidel dizia que isso era um atentado contra a cultura, contra os povos subdesenvolvidos, que jamais poderão pagar a cultura dos países desenvolvidos. Por isso abolimos o direito autoral e eu estava de acordo com isso. Anos mais tarde, a Revolução voltou a pagar o direito autoral.
MONA LISA DA FOTOGRAFIA
Uma crítica italiana chamou minha foto de Che de Mona Lisa da Fotografia e já se disse, em muitos lugares, que me sinto como um Leonardo da Vinci contemporâneo. Falando francamente, estou feliz por algo que eu tenha feito no lapso de tempo que me coube viver neste mundo; tempo que, quando se olha do começo da velhice para trás, é muito curto. É muito lisonjeiro fazer algo para deixar para os demais. Ou seja: sinto-me feliz por ter feito uma obra que, cem anos depois de eu morrer, ainda será apreciada. Isso me dá orgulho de ser humano. Penso que foi uma grande oportunidade poder, com uma máquina fotográfica - já que eu me dedicava a coisas tão banais como a moda e os modelos de moda -, ter nascido na mesma época desses heróis da Revolução Cubana como Fidel, como o Che, como todos os demais que conheci. Mas, do ponto de vista profissional, de fotógrafo, não vou dizer que não sinto orgulho: sim, orgulho. Mas não com a vaidade injustificada por ter feito essa foto, porque ela, eu creio, foi fruto de meu profissionalismo, de meu estado de espírito, de estar imerso em uma situação especial naquele momento; mas não tem um talento fotográfico maior nisso.
*TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK
Estadão, 14/out/07
Em entrevista inédita, de 1988, cubano conta como fez o flagrante de Guevara, foto que virou um ícone da rebelião
Em 14 de fevereiro de 1988, o fotógrafo cubano Roberto Paneque Fonseca e o colega brasileiro Ricardo Malta visitaram Alberto Korda (1928-2001), fotógrafo da Revolução Cubana e autor da mais célebre imagem de Che Guevara, em sua casa em Miramar. Em meio a doses de rum e goles de Tropi Cola, a Coca-Cola cubana, iniciaram uma conversa de quase oito horas em que Korda falou, entre outros temas, do contexto em que fez a foto do guerrilheiro, morto há 40 anos, no dia 8 de outubro, e da maneira como ela foi amplamente utilizada ao longo da segunda metade do século 20. A entrevista será publicada em forma de livro, ainda sem data definida, pela Record, mas o Estado reproduz com exclusividade alguns trechos do material.
O FLAGRANTE
Penso que o Che foi um sujeito excepcional e que eu tive a sorte, por casualidade, não por talento fotográfico, de fixar a imagem que ele transmite, capaz de dizer a todos que a olham quem foi Che Guevara e a sua personalidade. Não me orgulho dessa foto. É uma foto jornalística numa tribuna pública. Mas eu lhe digo que entre as centenas de fotos que foram tiradas do Che esta sobrevive acima das demais... Não me contradigo ao dizer que a foto foi casual. Eu lhe falo como fotógrafo. Não que eu tenha apanhado o Che, trazido ao meu estúdio e lhe dito: fique aqui, fique ali, o cabelo assim, olhe para lá, dê ao olhar uma força assim... Não, não há nenhuma intervenção minha nisso. Estou num comício público, com milhares de pessoas, com uma velha câmera: uma Leica, uma velha Leica com lente de 90 mm, retratando os personagens que estão na tribuna de onde Fidel vai falar, por conta de uma sabotagem que a CIA nos havia feito e nos custou mais de 100 mortos: um vapor carregado de armas, francês, que explodiram aqui, na Baía de Havana, e no momento em que estou correndo a câmera pelo espaço dos personagens que estão na tribuna, fazendo um trabalho profissional de jornalista, depois de ter retratado a multidão, as caras tristes das pessoas, então vou retratar as pessoas do governo que estão ali, e no momento em que passo por um espaço vazio, surge diante de mim a figura do Che com uma imagem assim. Tiro uma foto quase assustado de ver aquela imagem na minha câmera; quase por um movimento instintivo do subconsciente, viro a câmera, coloco-a na vertical e faço uma segunda foto: dois negativos. Logo em seguida o Che se retira e sai da tribuna e fica para sempre a imagem que você conhece. Tem um jornalista cubano que me entrevistou e eu lhe respondi mais ou menos isso que disse a você. Ele disse: “Bom, o Korda é humilde. Ele disse que não tem nenhum mérito histórico por ter feito a foto; mas é preciso reconhecer que Korda, como repórter fotográfico, estava sempre alerta.” Isso eu reconheço. Havia 30 repórteres fotográficos junto de mim naquele dia e nenhum tirou a foto.
CARTIER-BRESSON
Admiro muitíssimo Cartier-Bresson, e tenho seu livro O Momento Decisivo. E essa foto foi o meu momento decisivo: 1/250 avos de segundo com 5,6 de diafragma. Tirei, e 1/25 avos de segundo depois a imagem se perdeu. Sabe por quê? Porque uma cabeça, quando a pessoa está andando, num segundo está em outro lugar: a foto não serve.
CORAÇÃO
Meu trabalho naquele momento era uma situação emocionante. Pelo simples fato de sermos cubanos: haviam matado mais de 130 cubanos numa explosão de sabotagem. O ambiente, as lágrimas... tudo era emocionante, isto é, o coração estava presente ali; mas sempre ponho o coração em meu trabalho. Quando não posso pôr o coração em meu trabalho, eu o rejeito. Muitas vezes vêm me pedir um trabalho e se não estou com o coração para ele, digo: Bom... quem sabe na semana que vem. Ou seja, não aceito que naquele momento eu estava naquele lugar profissionalmente ou ganhando 10 pesos que me pagariam para estar ali. Estava como fotógrafo, repórter, cubano, pesaroso e por inteiro. Meu coração estava atrás daquela câmera, isso não nego. Agora, que tenha saído o Che no momento em que eu passo a câmera, com aquela expressão e com aquela figura, e que eu quase instintivamente tenha apertado o obturador, não me deixa orgulhoso de ter feito uma tremenda fotografia. Não sou amigo de René Burrí. Ele fez uma foto do Che que está num cartaz colorido, com o microfone. Ele pensou que essa foto fosse a mais famosa. Há pouco eu o vi no Hotel Habana Libre e lhe disse: René, historicamente eu te ferrei. A foto fui eu que fiz, não você. E ele me disse: É verdade. (Ele ri com picardia).
COINCIDÊNCIAS
Acredito em coincidências, existe um fator de tantos por cento; mas também admito o contrário, que eu estava ali de coração, que estava muito atento ao que estava se passando, que tinha um sentimento que fixava o Che Guevara nessa expressão, porque ela era em parte compartilhada por mim como fotógrafo. Quero dizer que um conjunto de coisas permitiu que a foto fosse feita. Tanto é que alguns dos 30 fotógrafos ou mais que estavam ali tinham equipamentos melhores que o meu, e não fizeram a foto. O Che passou por ali e não chamou a atenção deles: não estavam atentos. E mais: eu volto do ato, revelo os negativos, faço os contatos, examino o contato, digo: boa foto do Che. Faço um print, levo-o ao jornal para que o publiquem à noite e no dia seguinte saísse a descrição gráfica do ato. No entanto, escolheram para primeiro plano minha foto de Fidel, com duas granadas na mão, expondo-as para o povo, uma bandeira cubana ali atrás... mas a do Che não publicaram. Não lhes chamou a atenção; mas, no dia seguinte, pego o negativo, observo-o e digo para mim: a verdade é que o Che está com uma expressão que é minha imagem do caráter do Che, da sua determinação, do seu olhar para o futuro, para um espaço que não sei. Encontro nela uma série de valores e faço esta que está aí, na entrada do meu estúdio: 30 por 40 polegadas (aproximadamente 76 cm por 35 cm), fixo-a numa moldurinha de madeira e coloco-a no meu estúdio. Essa foi a primeira foto que imprimi do Che, amarela assim como esta... Coloquei-a no meu estúdio e me pus a desfrutá-la como fotógrafo. Depois disso, passaram por meu estúdio alguns companheiros da Revolução, entre eles Haydée Santamaria, que era diretora da Casa de las Americas, pessoa muito sensível, admiradora do Che, e me disse: “Korda, que boa foto do Che. Gostaria de me dar uma?” Eu lhe disse: “Para mim é uma honra!” Haydée foi a companheira de Fidel em Moncada; seu irmão foi morto e levaram-lhe em sua cela os olhos dele: “Veja, são os olhos do seu irmão.”
FELTRINELLI
Naquela época, meu estúdio ficava na Calle 21, na frente do Hotel Capri, e digo a Feltrinelli para entrar. Ao ver a foto, ele me diz: “Essa é a foto que eu preciso.” Não sabia quem era Feltrinelli, para mim era apenas um italiano. Feltrinelli me disse: “Pode me fazer duas cópias deste tamanho para amanhã e eu mesmo passo para apanhá-las?” Fiz as duas cópias e no dia seguinte o homem passou para retirá-las. Perguntou “Quanto é?”, e eu respondo que nada. Você é amigo da companheira Haydée Santamaria. Dei as cópias a Feltrinelli e fiquei tranqüilo, porque não estava fazendo nenhuma transação comercial. Nem me interessava o que ele ia fazer com a foto.
DISCURSO DE FIDEL
Depois vem a queda do Che na Bolívia e, pela primeira vez, a foto é utilizada no edifício do Ministério do Interior, em dimensões gigantescas, servindo de fundo para a Plaza de la Revolución de Havana e, com isso, para o discurso de Fidel pela morte do Che. É nesse momento que Cuba a torna oficial, porque é utilizada no discurso fúnebre feito por Fidel. Aquilo foi impressionante: havia quase 1 milhão de pessoas na Plaza de la Revolución e não se ouvia nada. Enquanto Fidel falava, reinava o silêncio mais absoluto que eu já tinha ouvido em uma multidão. Em seguida, depois da chegada a Cuba do Diário do Che na Bolívia, Fidel deu a Feltrinelli a primazia mundial da publicação do Diário.
DIÁRIO DE CHE
Eu estava em Milão e os jornais anunciavam a edição do Diário com grande destaque e que o que fosse arrecadado seria destinado à guerrilha venezuelana. Essa era grande notícia e vinha ilustrada com um desenho baseado na minha foto. Com o Diário imprimiram um cartaz da foto com 1 metro de altura por 70 centímetros de largura... faro comercial. Nesse momento, na Europa e no mundo todo, para a juventude, tanto marxista como esquerdista, anarquista, burguesa, milionária, a figura do Che se convertera no símbolo de uma época. Esse homem fez um cartaz com essa foto - o único que a tinha era ele -, vende 1 milhão de cartazes em menos de três meses a US$ 5 dólares cada um: US$ 5 milhões de dólares! A mim, ninguém nunca perguntou nada, nem me pagou nada, nem me consultou sobre nada.
SEM POLÊMICAS
Em 1987, em Milão, Grazia Nery, uma das mulheres que dominam a fotografia de imprensa na Europa Ocidental, me disse: “Korda, assine para mim este documento dizendo que a propriedade dessa foto é nossa, que você a entregou para nós em tal dia, no ano 60 e não sei quanto, que você deixa isso nas mãos dos meus advogados, e eu garanto US$ 250 mil para você. O resto é meu...” Não sei quanto ia tirar da editora de Feltrinelli. Era uma briga para os advogados, que sempre fazem acordo, e que se não chegasse a recolher US$ 1 milhão, ao menos abocanharia US$ 500 mil para ficar em “paz”.Expliquei a ela que queria entrar em polêmicas comerciais com essa foto. Se fosse outra coisa, uma foto minha, sim; mas uma foto do Che, não. Me dou por satisfeito por Feltrinelli ter feito o favor a mim, um fotógrafo que se dedicava a fazer moda, de retratar a Revolução porque me coube a época em que vivi. Eu me sinto famoso de passar à posteridade com uma obra minha; não eu; uma obra minha, graças a Feltrinelli. Eu lhe dei a foto. Ele podia fazer o que quisesse com ela, porque eu lha dei.
KORDA A RICARDO MALTA
Vou lhe explicar uma coisa que você talvez não compreenda, porque vem de outro país, de outro mundo. Quando eu dei essa foto, o direito autoral em Cuba havia sido abolido, por causa de um livro de Medicina de um professor americano. Se publicássemos esse livro para ser utilizado pelos nossos estudantes de medicina, teríamos de pagar milhares de dólares ao americano. E Fidel dizia que isso era um atentado contra a cultura, contra os povos subdesenvolvidos, que jamais poderão pagar a cultura dos países desenvolvidos. Por isso abolimos o direito autoral e eu estava de acordo com isso. Anos mais tarde, a Revolução voltou a pagar o direito autoral.
MONA LISA DA FOTOGRAFIA
Uma crítica italiana chamou minha foto de Che de Mona Lisa da Fotografia e já se disse, em muitos lugares, que me sinto como um Leonardo da Vinci contemporâneo. Falando francamente, estou feliz por algo que eu tenha feito no lapso de tempo que me coube viver neste mundo; tempo que, quando se olha do começo da velhice para trás, é muito curto. É muito lisonjeiro fazer algo para deixar para os demais. Ou seja: sinto-me feliz por ter feito uma obra que, cem anos depois de eu morrer, ainda será apreciada. Isso me dá orgulho de ser humano. Penso que foi uma grande oportunidade poder, com uma máquina fotográfica - já que eu me dedicava a coisas tão banais como a moda e os modelos de moda -, ter nascido na mesma época desses heróis da Revolução Cubana como Fidel, como o Che, como todos os demais que conheci. Mas, do ponto de vista profissional, de fotógrafo, não vou dizer que não sinto orgulho: sim, orgulho. Mas não com a vaidade injustificada por ter feito essa foto, porque ela, eu creio, foi fruto de meu profissionalismo, de meu estado de espírito, de estar imerso em uma situação especial naquele momento; mas não tem um talento fotográfico maior nisso.
*TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK
Estadão, 14/out/07
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